sábado, 30 de março de 2013

A Loucura Como Ato Político

         Que os padrões ditos “normais” que regem a sociedade são utilizados como meio de manipulação e massificação dos indivíduos, roubando a sua autenticidade e enquadrando-os dentro dos propósitos do sistema social vigente, já é sabido. Contudo, é interessante e esclarecedor, antes de discutirmos o papel da “loucura” como ato de resistência, discutirmos mais acerca da dita “normalidade”.
         Segundo a definição dos dicionários normal é tudo aquilo que segue a norma, ou seja, algo que não foge às regras impostas, que não contesta, nem questiona, qualquer um que questione as normas, que fuja às suas imposições, que se rebele é, portanto, considerado, anormal.
          Nesta sociedade patriarcal, machista, heteronormativa1 e capitalista, o dito normal é aquele que expressa estas características, ou seja, o indivíduo integrado a uma família comandada por um Pai e submissa a este, um indivíduo que trabalha (e trabalha muito) e se dedica ao seu trabalho acima de qualquer outra coisa, faz deste trabalho a sua vida, sem questionar, nem contestar, vende seu tempo e seu corpo por um preço bem pequeno, produz e o lucro obtido com essa produção fica para outra pessoa (o patrão) e acha isso... normal. Mantém relações sexuais apenas com pessoas do sexo oposto, mesmo que no íntimo esta não seja a sua preferência e muitas vezes sem se questionar se é isso mesmo o que realmente o satisfaz, simplesmente porque é normal, acredita que sua cultura e sua religião (aliás, que também são construções sociais e imposições históricas ao indivíduo) são as únicas normais e que qualquer outra forma de cultura ou religião, qualquer outro grupo que desenvolva relações sociais diferentes destas, impostas ao indivíduo e que são as únicas que ele aceita, são “bárbaros” ou “inferiores”.
        Que o discurso da “normalidade” sempre serviu aos diversos regimes políticos como meio de coerção também é sabido, que, ao longo de toda a história, muitos daqueles que se opuseram às imposições de governos tirânicos, ou que se negaram a viver dentro dos padrões que a sociedade impunha, foram excluídos, enviados para “sanatórios”, mas não seria incorreto chamarmos de “prisões políticas da alma” a estes locais de prisão e de tortura para o qual eram (e ainda são) enviados nossos livres pensadores e aqueles que tentaram viver de maneira livre, sem as amarras das regras pré-estabelecidas e incontestáveis.
       Porém, não é deste tipo de “loucura” que trataremos aqui, pois para nós já está mais do que claro ao que serve o discurso da “normalidade” e a opressão que sofrem todos os que se opõem às normas pré-estabelecidas, bem como o nosso repúdio tanto à opressão, quanto às normas e a sociedade que as impõe.
       Entretanto, este pequeno texto tem por objetivo tratar de outro tipo de “loucura”, que são as neuroses geradas por esta caótica e cruel sociedade capitalista, ou simplesmente as angústias inerentes à própria condição humana, mas que no capitalismo, por não terem um espaço para serem debatidas e “trabalhadas”, muitas vezes adquirem um caráter “patológico”.
É neste sentido que defendemos que a “loucura” traz em si um caráter político, de resistência.
       As neuroses, o surto, o grito, nada mais são do que o não oprimido na garganta, entalado, o não que gostaríamos de dizer ao patrão tirânico, à professora opressora, ao ônibus lotado, ao relógio, o despertador especialmente, às humilhações e privações sofridas dia-a-dia.
       Uma máquina quando você humilha, quando você bate, quando você dá ordens e a faz executar incessantemente a mesma tarefa, milhares de vezes, sempre da mesma maneira, sem nenhuma alteração, mínima que seja, ela não reage, ela executa infinitas vezes a mesma tarefa sem se extenuar, até o esgotamento total e quando ela quebra você joga fora, sem nenhuma culpa e simplesmente a substitui por outra.
      Uma das maiores contradições do sistema capitalista é transportar esse tratamento dado às máquinas aos seres humanos, a diferença, entretanto, é que um ser - humano não é uma máquina, não é uma pedra, não é uma latinha de coca-cola, o ser humano, ao contrário, ele grita, uma hora ele berra, ele cansa, chora, de uma maneira ou de outra ele reage. Resiste.
      Seja gritando, seja pegando bolinhas no ar, ou enxergando bichos na parede, de um jeito ou de outro parece haver algo na natureza humana que o obriga a resistir, mesmo que de maneira incipiente e inconsciente, esta, sem dúvida, é uma das grandes diferenças entre os seres animados (que tem anima, alma) e os objetos inanimados, uma pedra se você chuta, ela rola, no máximo, uma pessoa não, se você chuta, ela grita, ela xinga, chora ou te chuta de novo, mas ela reage de alguma maneira.
       Deitado na cama chorando o indivíduo diz (quando tem força para dizer) –“Hoje não vou trabalhar”- o que pouca gente compreende é que algumas pessoas chegam a um ponto em que preferem morrer à enfrentar o fardo da eterna repetição diária de uma atividade inútil, sem sentido e principalmente, que não causa o mínimo prazer.
       Isso é resistência também, não uma resistência elaborada, com embasamento teórico, mas é, assim como o banditismo, uma atitude pré-revolucionária.
       O mesmo se aplica à surtos psicóticos, crises ansiosas ou de pânico. Quantos operários não desenvolvem fobia da fábrica, de seu ambiente, seu barulho, quantos professores não tem crises de pânico ao entrar numa sala de aula?
       É claro, que não se trata aqui de fazer uma apologia destas tristes patologias geradas ou agravadas pela sociedade capitalista, mas de apontar que com seres humanos a coisa funciona de uma forma diferente, não se pode impedir uma pessoa de gritar a sua ira, ou de chorar a sua dor, ao contrário das máquinas, mais cedo ou mais tarde, o indivíduo vai externalizar a sua opressão de alguma forma e nem sempre estas formas são bonitas, nem sempre elas são sãs e calculadas, muitas vezes elas saem apenas como gritos, surtos, lágrimas.
       Sem dúvidas, em outro modelo de sociedade, onde não haja a exploração de um indivíduo por outro, onde não haja opressão, machismo, nem preconceito, ainda haverá surtos, patologias, medos. Contudo, numa sociedade mais evoluída socialmente, mais sadia, será possível trabalhar melhor esses medos, as angústias naturalmente causadas pela misteriosa condição humana.                      Com o tempo livre, por exemplo, depois que o ser - humano tiver se libertado das amarras do trabalho abstrato e alienado, com o ócio criativo, as atividades artísticas, o tempo de estudo, o ser - humano sem dúvida vai poder alimentar a sua alma, dessa forma, ele será cada vez mais diferente das pedras e cada vez com menos necessidade de gritar para não esquecer disso.

Audrei Teixeira de Campos,
escritora, historiadora, professora.

1 Que impõe normas heterossexuais.

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